Revolução tecnológica
O trabalho em saúde é multifacetado e complexo. A revolução tecnológica em andamento aponta que será ainda mais nas próximas décadas. As ações em saúde envolverão a atuação de equipes multidisciplinares conectadas face a face e por ambiente virtual. Estas equipes irão se articular com atores não humanos capazes de superar as habilidades humanas com resultados amplamente melhores em termos de eficácia em tratamento e prevenção.
Todos os profissionais terão de se reinventar. O processo histórico do surgimento das instituições hospitalares e do nascimento da clínica fez do prático barbeiro que arrancava dentes e amputava membros o ícone da união entre o poder da produção de conhecimento (a ciência) e o poder de conhecimento aplicado. Pioneiramente o saber e ação estavam, então, sintetizados na mesma figura: a do médico cirurgião. No entanto a cirurgia como operação fundada na neuromotricidade fina humana irá desaparecer nos próximos anos.
Robôs supervisionados por um novo tipo de médico cirurgião farão as intervenções cirúrgicas mais delicadas. Este novo médico será um engenheiro multicapacitado e articulado com médicos clínicos de família, assistente sociais, nutricionistas, enfermeiros e equipe técnica de formação em nível médio. A relação irá requerer que todos conheçam profundamente seus pacientes (em algumas universidades já se especula se não será melhor chamá-los de parceiros)
Equipes inteiras se encarregarão de fazer o diagnóstico e o processo será avaliado como um todo pondo em prática a transdisciplinaridade dialógica que hoje só vemos em alguns nichos de excelência e na teoria. Uma ação interdisciplinar executada de modo que as responsabilidades possam ser claramente atribuídas a cada profissional do ramo da saúde em suas diferentes fases de aplicação.
Por outro lado poderá haver fechamento de postos de trabalho em determinadas áreas e abertura de outros postos em outras áreas da nova atenção em saúde que se desenha para o transcurso do século XXI.
O entorno do paciente/usuário/parceiro será mais povoado de profissionais de inúmeras disciplinas da atenção. Seja nos consultórios, nos centros de diagnóstico, seja nas unidades básicas de saúdes, incluindo aí a rede de ESF.
Hoje o cálculo de pessoal envolvido no cuidado em saúde é feito em torno da quantidade de leitos. Com isso uma parte considerável dos trabalhadores da saúde não entra em contato com o paciente, pois se encarregam de fazer mover a máquina pesada da internação hospitalar.
O tempo médio de internações vem caindo drasticamente ao longo das últimas décadas e é por isso que muitos leitos têm sido fechados. Sua manutenção é cara e ineficiente. O tipo de leito hospitalar necessário hoje envolve uma pesada carga de tecnologia instalada para intervenções menos longas e mais eficientes. Este investimento custa caro e envolve a articulação com instituições ou setores de atendimento domiciliar e hospital dia.
Neste contexto acelerado de mudanças na indústria do cuidado vem surgindo com força no cenário um um conjunto de atores que era mal percebido pela opinião pública. O trabalhador da saúde de nível médio era visto como um ator menor e subalterno neste contexto em que os médicos eram os grandes jogadores.
Com forte espírito corporativo e tranqüilidade econômica para agir em bloco os médicos podem impor limites ao livre mercado no trabalho em saúde. A mobilização pela aprovação da Lei do Ato Médico simboliza claramente esta tentativa bem sucedida de se impor os interesses da corporação aos ditames das regras de um livre mercado de trabalho em saúde.
Com o desvelamento das relações de poder que conformam o campo do trabalho em saúde, temos a oportunidade de dar visibilidade aos fatos ocultos que permanecem sustentando a lógica do sistema. Um financiamento desigual segundo os interesses políticos e corporativos em jogo. Porém estes fatos são mantidos a margem do debate. Para ser fiel a norma constitucional é necessário dar conta da questão do financiamento e da gestão. Resumindo e sendo claro, há a necessidade de uma carreira nacional para todos os trabalhadores da saúde nos moldes que a corporação médica reivindica.
O dilema do financiamento e a qualidade da atenção
Atualmente as formas de custeio e financiamento das ações em saúde são muito diversificadas e seguem a lógica dos interesses políticos das categorias que tem mais poder de barganha ou do tráfico de influência da indústria, fornecedores de insumos e de infraestrutura.
O resultado disso é que para atender ao mesmo cidadão contribuinte temos variações de salários pagos aos Técnicos em Enfermagem entre 600 reais por mês a até 2500 reais para ficar em um exemplo apenas. Tudo depende da instituição em que se trabalha dentro do município de Porto Alegre. Um absurdo, visto que a remuneração garante parte da qualidade de vida dos trabalhadores e incide diretamente sobre a segurança do cidadão que usa o sistema de saúde pública.
Há hospitais que se sustentam apenas com o faturamento que fazem do convênio com o SUS e com os seguros privados. Outros têm a vantagem da isenção de encargos porque possuem a carta de instituição filantrópica fornecida pelo Ministério da Saúde. Ainda há as empresas de economia mista que são subsidiadas com recursos do Ministério da Educação e/ou simplesmente tem seu déficit operacional coberto pelo Ministério da Saúde.
Assim o cidadão que tem a sorte de ser cuidado em instituições bem financiadas é beneficiado pelo atendimento melhor. Por outro lado estas instituições atendem uma demanda maior que sua capacidade anulando a vantagem anterior. Já os cidadãos que se dirigem ao atendimento em instituições com financiamento deficitário sofrem o atendimento por equipes também sobrecarregadas e, além disso, mal remuneradas.
Aos trabalhadores sobra um dilema de fio duplo. Ou passam em um concurso e vão adoecer em hospitais que pagam bem, devido à sobrecarga de trabalho na atividade fim, ou trabalham em hospitais que não podem pagar melhores salários devido ao problema do financiamento. Ou seja, saem cortados de qualquer jeito.
Há dados ainda observados no cotidiano que nos informam de uma alta morbidade na pós-aposentadoria imediata, no aumento das aposentadorias por invalidez e de um trabalho realizado em constante sofrimento biopsiquico contemplando inúmeros agravos a saúde do trabalhador. Este fenômeno tem afetado desde os trabalhadores médicos que tem o melhor piso salarial do trabalho em saúde e a carga horária mais humanizada, até os auxiliares e técnicos em manutenção e higienização de instituições hospitalares.
Essa quebra da identidade comum no trabalho em saúde originada nas dificuldades de um financiamento adequado para todas as instituições tem inviabilizado a implantação plena do SUS. O regime de contratação único e a carreira unificada em todo o país são desafios que se não forem equacionados irão acabar por ser o fator desencadeante de um retorno a privatização da saúde.
Privatização da saúde e privilégios corporativos
Os secretários de saúde têm argumentado a favor dos regimes de contratação pela CLT dizendo que não podem fazer os médicos cumprirem suas cargas horárias contratuais. Culpam as prerrogativas dos servidores públicos como sendo o que emperra o sistema. Uma chantagem cínica, para dizer o mínimo. Temos visto prefeitos de todos os partidos, inclusive petistas, acusarem os defensores do SUS de responsáveis pela privatização radical da saúde por serem contra a instauração de Fundações de Direito Privado para gerirem a saúde nos municípios.
Na verdade, querem perpetuar a tradição brasileira da casa grande e da senzala. Garantem para si e para os que tiveram a sorte de ingressarem no regime estatutário um privilégio que irá terminar junto com a aposentadoria dos atuais servidores eleitos, concursados e/ou estatutários. Desoneram os fundos municipais de aposentadoria e passam os custos para os contribuintes do regime da previdência social.
Desta forma não se toca na questão central e permanece o custeio e financiamento desigual dos conveniados ao SUS. Este modelo de financiamento desigual acarreta as imorais diferenças salariais entre trabalhadores que realizam as mesmas funções e atendem aos mesmos usuários.
Precisamos reconhecer uma dupla verdade que embora pareça excludente é, na verdade complementar: Os cerca de 160 bilhões de reais investidos ao ano pelo setor publico e complementar de saúde no Brasil, são insuficientes para atender a demanda. Porém são mais do que suficientes para serem alvo de pilhagem através da corrupção endêmica que enovela gestores, prestadores e fornecedores dos serviços e da infraestrutura de atenção em saúde.
Já vimos a derrocada do complexo de saúde da ULBRA por irregularidades que lhes custaram a perda da carta de filantropia. Ainda veremos mais instituições ruírem como a ULBRA. Em parte pela mudança da matriz tecnológica, em parte pela gestão temerária.
E cabe um alerta para deixar bem claro que o dilema financiamento versus gestão está amplamente superado. Com a mudança da matriz tecnológica o binômio não é mais excludente: Precisamos de uma nova gestão que siga os princípios, diretrizes e dispositivos da Política nacional de Humanização do SUS - PNH e aumento no financiamento.
As Sociedades Anônimas de economia mista em que o governo federal é acionista majoritário correm sérios riscos, pois seu funcionamento é sabidamente deficitário e em alguns casos subsidiado com recursos federais. É importante sublinhar que em cada uma das modalidades de financiamento é sempre o contribuinte que arca com o custo. As isenções das filantropias são cobertas por recursos da união. Em última instância dinheiro dos contribuintes/usuários.
Um caminho para a afirmação da identidade do trabalhador em saúde
A solução para a promoção da humanização da gestão, das relações de trabalho e do atendimento aos usuários passa pelo aumento significativo dos gastos com saúde. Talvez os gastos em saúde precisem dobrar para que todos os trabalhadores da saúde sejam remunerados como os do Grupo Conceição e Hospital de Clínicas, ambos federais e subsidiados no seu déficit operacional.
Este é o custo da eficiência: oferecer a todos as instituições conveniadas ao SUS o mesmo financiamento. Assim a identidade do trabalho em saúde poderá ser afirmada e legitimada em sua relevância plena para os cidadãos contribuintes.
Os que se queixam da alta carga tributária devem lembrar que temos nosso Judiciário e Ministério Público entre os mais bem pagos do mundo. Se estes instrumentos de controle democrático não conseguem fazer com que os diretores técnicos e gestores dos serviços públicos façam os servidores públicos cumprirem os contratos de trabalho não é a constituição que assegura a saúde como sendo um serviço público primordial que deve ser rasgada.
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