1.1 - Estabilização da democracia e redução das desigualdades sociais.
Que o sistema de proteção ao trabalho no Brasil é modelo para os demais países, inclusive os desenvolvidos, isso não se discute. Que deve haver um aumento gradual nos ganhos dos trabalhadores também não se discute. Que o sistema de indenizações e aviso-prévio previstos na legislação constitucional trazem maior dignidade e inclusão social também não se discute. O que deve ser objeto de discussão é a questão da estabilização da democracia através do trabalho e de seus agentes, os trabalhadores.
A Constituição prevê, em seu artigo 3o, I e III[1], que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais. É sabido que o Brasil é um dos paises com maior nível de desigualdade social. E essa desigualdade social não está presente apenas se compararmos pessoas desempregadas com empregadas, mas sim e principalmente, se analisada a situação de pessoas com pouca formação intelectual. A falta de estabilização da vida privada de cada um, que se faz primeiro pelo trabalho – elemento hoje principalmente de subsistência – impede o avanço da massa trabalhadora rumo à qualificação profissional e intelectual. A grande quantidade de horas extras prestadas, a fim de evitar a perda do emprego, impede que os trabalhadores possam manter-se por mais de quatro ou cinco anos na escola ou fazendo cursos de aprendizagem.
O trabalhador, seguro de que seu ganha-pão continuará sendo seu ganha-pão, pode ocupar-se de outros elementos de existência humana. Entre estes outros elementos está o acúmulo de conhecimento e a busca por uma emancipação intelectual. É dado estatístico que as pessoas com maior nível de estudos recebem salários maiores e estão mais ligados à sociedade como ela se apresenta. A falta de tranqüilidade, do saber o que vai ocorrer com o emprego no futuro, leva a um constante estresse e uma jornada excessiva de trabalho a fim de preservar o emprego. É por isso que a busca de uma sociedade mais justa e solidária, com erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais passa, necessariamente, pela estabilização do emprego.
Pela estabilização do trabalhador em seu emprego. Isso estabiliza a democracia e permite que, conjuntamente, a sociedade atinja aquilo que é ideal, um Estado Democrático de Direito real, emancipatório e para todos.
1.2 - Princípios, dignidade humana e constituição.
Foi-se o tempo em que o magistrado deveria julgar apenas conforme as regras jurídicas. O pós-positivismo trouxe uma nova forma de se interpretar e ver o direito. Não se desprezam a as regras jurídicas, mas a elas, como espécies de normas, se somam os princípios. Os princípios deixam de ser secundários, subsidiários às regras, utilizáveis apenas nos casos de lacunas, para serem algo central dentro da lógica constitucional presente[2]. Tem-se, hoje, o estado democrático de direito centrado na dignidade da pessoa humana. O ser humano em si é o centro, um fim em si mesmo. Cada pessoa, com suas elementares e circunstâncias passa a ser todo o estado democrático de direito. A agressão a um humano, é a agressão aos demais, à toda a ordem jurídica posta. Tanto é verdade que para Ingo Wolfgang Sarlet a dignidade humana está ligada à condição de ser humano, inerente a toda e qualquer pessoa humana. É uma qualidade intrínseca da pessoa e irrenunciável, constituindo um elemento que qualifica o ser humano como humano, não podendo ser dele destacado. Mesmo o mais cruel dos criminosos é detentor, como ser humano, de dignidade. O que representa o denominador e que faz com que os seres tenham dignidade é o fato de apresentarem razão e consciência. É este o elemento comum de todos os homens e que consiste em sua igualdade.[3] Não é diferente no caso do trabalhador. Quando ele se vincula a uma empresa, não se despe de seus direitos fundamentais e de sua dignidade como ser humano.
Deve o empregador respeitar a condição de ser humano, tratando-o como um fim, mesmo que por força do contrato de emprego, autorizado pelo processo democrático, artigo 7o, I, primeira parte, da CF/88, possa utilizar-se dele como meio. Neste sentido Luz Zerga aduz que “Además, se debe tener en cuenta que el trabajador, si bien puede llegar a identificarse con los objetivos de la organización en la que trabaja, no pierde por ello sus propios intereses ni fines. Se integra voluntariamente en la empresa, ‘instituto jurídico con vocación de permanencia’, diferente a ‘las personas que en ella se integran’, para aportar ‘sus conocimientos, sus esfuerzos o su capital’, y alcanzar así su propio proyecto personal. La misión de la empresa, por tanto, no se agota en su función económica, sino en la que ha destacado la jurisprudencia social: la de constituir ‘un valor superior en el que se integran otros’, siendo este valor superior que ‘se debe salvaguardar como el más alto de todos’, el ‘de la dignidad del hombre que trabaja’”.[4] Segundo Clève, há duas formas de interpretar-se os preceitos constitucionais: o primeiro, é indiferente e insensível aos instrumentos criados para transformar a nova ordem constitucional e se chama de dogmática da razão do estado. O segundo, que tem como objetivo primeiro estudar o direito constitucional a luz da dignidade da pessoa humana é conhecido como dogmática constitucional emancipatória.[5] É a esta que me filio, ciente da nova ordem constitucional.
1.3 - Do artigo 7o, I, da CF/88.
Não há como falar em reintegração, hoje, sem pensar, mesmo que de relance, no que consta do artigo 7o, I, da CF/88. Ali consta que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; [...]”. Note-se que há outras várias formas de garantia de emprego previstas no ordenamento jurídico pátrio, todas elas, contudo específicas, destinadas a determinadas situações pontuais como por exemplo acidente do trabalho, gravidez, dirigente sindical, entre outros.
Estas formas de garantia, contudo, não excluem a aplicação do artigo 7o, I, da CF/88. É que as garantias específicas são um reforço, algo destinado a situações pontuais e que impedem o rompimento contratual, salvo justa causa ou falta grave. No caso da garantia de emprego prevista no artigo 7o, I, da CF/88, há que se aduzir algumas considerações. Como dito no item supra, não se pode, hoje, ler o direito posto apenas com os olhos voltados às regras jurídicas. Não há regra específica, não há direito. Uma vez que a constituição da república, centrada no valor social do trabalho, dignidade humana e proteção aos direitos humanos e fundamentais concede determinado direito fundamental a determinadas pessoas ou grupo de pessoas, deve o interprete, de posse dos princípios e regras, as normas portanto, buscar, no mundo fático, concretizar este direito fundamental.
Deve o interprete dar máxima efetividade ao direito fundamental em discussão, concretizando-o, portanto, a fim de fazer valer todo o ordenamento jurídico posto, este fruto do processo constitucional comunicativo, onde se decidiu, através dos representantes, que modelo de estado se gostaria de viver, no caso do Brasil, o democrático de direito. Dito isso, a fim de concretizar um direito fundamental, cabe ao juiz, buscar dentro do sistema jurídico posto, regras e princípios, a forma de dar força normativa a determinado preceito constitucional. Deve, no momento em que provocado, dar guarida aos direitos fundamentais e interpretar a norma de forma que atenda aos anseios da sociedade, consoante a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais. É por esta razão que quanto à garantia no emprego prevista no artigo 7o, I, da CF/88, embora a norma constitucional preceitue a necessidade de lei complementar, enquanto esta não se fizer presente, cabe ao magistrado, dentro do sistema posto, a fim de concretizar “faticamente” a garantia no emprego, encontrar um meio de fazer valer este direito. Como concretizar este direito? Preceitua o artigo 165 da CLT que “Os titulares da representação dos empregados nas CIPA (s) não poderão sofrer despedida arbitrária, entendendo-se como tal a que não se fundar em motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro. Parágrafo único - Ocorrendo a despedida, caberá ao empregador, em caso de reclamação à Justiça do Trabalho, comprovar a existência de qualquer dos motivos mencionados neste artigo, sob pena de ser condenado a reintegrar o empregado”. Este artigo é que pode, a fim de se interpretar a constituição tendo por base a concretização dos direitos fundamentais, complementar o direito à garantia no emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa. Note-se que não estou dizendo que o empregador, com a nova ordem constitucional não pode despedir. Deve ele, ao fazê-lo, fundamentar a despedida em motivos técnicos, disciplinares, econômicos ou financeiros, devendo, uma vez demandado em juízo, comprovar estes motivos.
Esta é a melhor forma de se concretizar o direito à garantia no emprego prevista no artigo 7o, I, da CF/88. Não há como permitir a denúncia vazia dos contratos quando a constituição expressamente a proíbe. Justificar a denuncia vazia na necessidade de lei complementar, é relegar um direito fundamental social a uma sub-condição, como se os demais, por exemplo de liberdades e garantias (propriedade, liberdade, etc.) fossem mais importantes, condição esta não observada pela constituição brasileira, ao contrário da portuguesa que dá maior valor a estes últimos, consoante artigo 18 da carta política deste país europeu. E não se diga que a multa de 40% sobre o FGTS substitui, momentaneamente, o direito à garantia no emprego. Esta multa é direito dos trabalhadores despedidos conforme as regras postas, por motivos, técnicos, econômicos e disciplinares, vinculada à parte final do artigo 7o, I, da CF/88 que preceitua “dentre outros direitos”. Acrescente-se a isso o fato de os direitos fundamentais serem auto-aplicáveis (aplicação imediata), consoante artigo 5o, parágrafo primeiro, da CF/88[6], o que afasta eventual alegação do caráter programático da norma em estudo, permitindo a imediata reintegração da autora, conforme direito posto, princípios e regras. De outro lado, faz parte da boa-fé objetiva, artigo 422 do CCB/02[7], informar ao cidadão, ao trabalhador o por que da rescisão do contrato.
Note-se que o trabalho é um elemento de existência humana. Do ser humano no mundo. É um direito de todo ser humano, centrado no princípio da dignidade humana e de vida feliz. Deixar de informar determinada pessoa do motivo pelo qual está sendo ela despedida, acaba por atingir o princípio da boa-fé objetiva. Ainda, não é compatível com a nova ordem constitucional a atuação às escuras. A nova ordem constitucional, estado democrático de direito, centra-se no princípio da transparência e da publicidade não apenas quanto às instituições públicas, mas privadas também. Por fim, o trabalho é a única forma de subsistência do homem trabalhador dentro da lógica capitalista. O trabalhador não pode, como a grande maioria das pessoas, especular da bolsa de valores. Não pode explorar a “mais valia” de terceiro. A forma que ele tem de seguir existindo e mantendo a sua família é com o seu trabalho. Se não há trabalho, não há como pagar as constas. Se a pessoa não paga as contas deixa de ser “cidadão”. A cidadania capitalista está centrada no crédito. O crédito, para o homem-trabalhador vem do trabalho. Ceifar, sem qualquer justificativa plausível, este direito de fazer parte da sociedade capitalista, fere, de morte, além dos preceitos constitucionais de vida feliz, a boa-fé objetiva.
1.4 - Da convenção 158 da OIT.
No que tange à convenção 158 da OIT, é bom que se diga que ela, embora tenha sido denunciada em 26 de novembro de 1996, esta denúncia não é constitucional. É que uma vez ratificada por decreto-legislativo número 68/92 este, com base no que preceitua o artigo 5o, parágrafo segundo, da CF/88[8], não poderia, por força do que consta do artigo 7o, cabeça, da CF/88[9], ser revogado. Assim, também com base na convenção 158 da OIT que em seu artigo 4o[10] consagra a garantia no emprego contra a despedida arbitrária, exigindo denúncia cheia do contrato, tem o trabalhador, no Brasil, direito à manutenção do vínculo empregatício, salvo motivo técnico, econômico, financeiro ou disciplinar, devidamente comprovados e justificados. O juízo apenas chama a atenção que o ato de denúncia da convenção 158 da OIT está “sub judice” junto ao Supremo Tribunal Federal. 1.5 Do caso concreto. Sem maiores arrazoados, é bom que se diga que a empresa não faz a prova do motivo por que despediu a autora. Resume-se a defender-se aduzindo que não tem ela direito à garantia no emprego, razão pela qual rescindiu, de forma arbitrária, o contrato de emprego. Assim, conforme o exposto supra, defiro a liminar e determino a imediata reintegração da reclamante ao emprego, no cargo por ela ocupado quando da rescisão, com mesmos salários, garantindo-lhe o direito aos reajustes concedidos por força de lei, contrato de emprego ou normas coletivas durante o afastamento, bem como eventuais vantagens de caráter geral e/ou pessoal que teria direito. Intime-se a autora por seu procurador via telefone. Após, expeça-se mandado, dispensado o plantão. As questões atinentes à discriminação e exercício da função de delegada sindical, bem como eventuais compensações e salários do período de afastamento serão analisadas em sentença.
Porto Alegre, 12 de abril de 2010.
RAFAEL DA SILVA MARQUES
Juiz do Trabalho Substituto