Este ano começou com muitas tragédias,
aqui e no Haiti. Acho que precisamos prestar atenção e aprender com elas. Não
basta se comover com o sofrimento do povo haitiano. Nossa solidariedade
não se resume aos que podem pegar um avião e ajudar no que for
possível. Nem a angariar dinheiro, alimentos
e medicamentos. Como mostra João Pereira Coutinho em sua coluna na Folha
de S.Paulo de 19/01, as catástrofes se equilibram equitativamente pelo planeta.
O que não é equitativo no globo são a renda e a democracia. Em 1989, um terremoto
de 7,1 na escala Richter causou 67 mortes nos Estados Unidos. No Haiti, um
terremoto com a mesma intensidade matou – oficialmente – 150 mil pessoas.
Um estudo citado por Coutinho, The Death
Roll from Natural Disasters: the Role of Income, Geography and Institutions (A lista
da morte por desastres naturais: o papel da renda, da geografia e das
instituições), publicado por Matthew Kahn na revista do MIT, em 2005, prova que
são a pobreza e a tirania – e não a natureza – que matam. Naquilo que é invenção
humana, estamos todos implicados. E, no caso do Haiti, especialmente nós, que
comandamos a Minustah, a missão da ONU que supostamente está lá para
estabilizar e reconstruir o país.
A série de tragédias deste início do ano
não é um prenúncio do apocalipse bíblico ou de alguma outra espécie de fim de mundo
mítico. Se o terremoto mata tantos no Haiti – e a chuva aqui – é por conta das
escolhas políticas, econômicas e éticas que fizemos. E não porque a natureza ou
um Deus cruel está nos matando como uma espécie de vingança pelo mal que causamos
ao planeta e a todas as outras espécies. Nosso estilo de vida é que está nos
matando, começando pelas vítimas de sempre, os mais pobres. O mal que nos
aniquila se origina no nosso livre arbítrio – e só pode ser revertido pela
transformação de nossas prioridades. Ser solidário hoje, diante da tragédia, é
mais do que chorar diante da TV. É passar a fazer escolhas mais responsáveis,
começando dentro da nossa casa.
Chove em São Paulo enquanto
escrevo esta coluna. Eu sempre adorei chuva. O barulho das gotas batendo na
janela, o vento que sempre a acompanha, o cheiro de terra molhada. Agora, me sinto
culpada por gostar. Assim que sou tomada pelo reflexoimediato do prazer, na
hora vem a culpa. Porque a chuva que faz bem ao meu bairro de classe média mata
alguém na parte mais pobre da cidade. Passo então a imaginar o tamanho do desamparo
de uma mãe com seus filhos num barraco a cada vez que começa a chover. De olho
no céu, de olho no barranco, sem poder proteger aqueles que ama. Visto a pele
dessa mulher que tem medo da chuva que vejo pela janela.
Apenas na madrugada de quinta-feira
(21/1) morreram nove pessoas na Grande São Paulo, a região mais rica do país. Porque
choveu. A maioria delas soterradas, embaixo de lama. Já são 62 mortos desde o
início de dezembro no estado de São Paulo. E são governantes escolhidos por nós
que culpam a natureza, “as chuvas em excesso”, pela morte de gente, em pleno
século 21, por causa da água que cai do céu. Ou usam a tecnologia para tuitar, como fez José
Serra (PSDB): 2010 é “um ano anômalo” no que se refere à quantidade de chuvas. Ainda
bem que temos um governador para nos avisar.
O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab
(DEM), diz que devemos ficar “tranquilos”. Não, senhor prefeito, eu não fico tranquila.
E acho que o senhor não deveria ficar também. Se eu fosse o senhor ou um dos
prefeitos que o antecederam, eu não dormiria à noite porque me sentiria
responsável. E mesmo não sendo o senhor nem um de seus
antecessores, eu durmo mal porque me sinto responsável. Por que enquanto tento dormir,
bem perto de mim e do senhor muitos estão com medo de morrer – e alguns morrem.
Por chuva.
Cada um de nós tem sua parcela de
responsabilidade, não apenas porque somos responsáveis por quem elegemos com nosso
voto, mas pela vida que levamos. As tragédias pelas quais choramos hoje foram
causadas não apenas pelas nossas más escolhas no sentido mais amplo, como
humanidade num recorte histórico, mas por aquelas que fazemos todo dia, como indivíduos,
do excesso de consumo de bens, água e energia à produção e destino do lixo. O
papelzinho amassado, a bituca de cigarro ou a garrafa pet jogados no chão pela
janela do carro vão entupir o bueiro ou o córrego lá adiante que, sem dar
vazão, vai matar a criança na periferia quando a terra desliza e desaba o
barranco sobre o barraco. Nossos erros – ou nossa ganância – estão sendo pagos
pelos mais indefesos e frágeis entre nós. Aqui e no Haiti.
Quando Jeanette me faz pensar sobre o que
realmente importa na minha vida, reafirmo a certeza de que não importa apenas a
minha vida. Minha vida só faz sentido, só se realiza, se tornar possível também
a vida do outro. Lá. Aqui. Em qualquer lugar. (Eliane Brum escreve às
segundas-feiras.)
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