Gilmar França

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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

ELEIÇÕES NA ESTRADA




No segundo semestre de 2008, os repórteres Eduardo Scolese e Hudson Corrêa, da Sucursal de Brasília da Folha de S.Paulo, viajaram por 30 municípios do interior para acompanhar de perto o processo eleitoral. As cidades foram selecionadas por conta de algum tipo de singularidade nacional: enquanto uma delas era líder em políticos cassados, outra era a campeã em trabalho escravo, outra ainda a de menor renda per capita e assim por diante.

Scolese fez o roteiro Nordeste-Sudeste, a partir de Natal até Brasília, passando por Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Piauí, Bahia e Minas Gerais. Já Corrêa seguiu por Nordeste-Norte-Centro-Oeste, de Teresina para o interior do Maranhão, depois Pará, Tocantins e Mato Grosso.

Leia abaixo um trecho que fala sobre as eleições na cidade de Xambióia, no Tocantins, um dos palcos da Guerrilha do Araguaia.
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O Palco da Guerrilha
Dois candidatos a vereador. Foram o que restou do PC do B (Partido Comunista do Brasil) em Xambioá, no Tocantins. Na década de 1970, o município foi um dos palcos da Guerrilha do Araguaia, comandada pelo partido e reprimida pelo Exército em meio à ditadura militar (1964-85).

A reportagem saiu de Curionópolis e após 330 quilômetros em estrada asfaltada com boas condições chegou a Xambioá, interessada em saber como é a eleição na cidade onde ocorreu a guerrilha, uma ferida ainda aberta na história brasileira.

Familiares de mortos e desaparecidos buscam na Justiça obrigar o governo a apresentar documentos sobre o conflito, uma tentativa de localizar onde estão enterrados os militantes mortos no embate com o Exército. Em 2004, uma equipe de peritos enviada pelo governo federal fez escavações em Xambioá procurando ossadas de guerrilheiros, mas foi um trabalho em vão.

Do mesmo PC do B da guerrilha, mas em trincheiras opostas, o assentado do Incra José Edimar Alves dos Santos, o Dida do Caçador, 41 anos, e o pedreiro Aloisio Correa Barbosa, 39 anos, postulantes ao cargo de vereador, são os únicos candidatos do partido no município localizado na região do Bico do Papagaio, ao norte de Tocantins, na divisa com o Pará e Maranhão.

Quando se observa no mapa essa região, um bico de ave é o formato que vem aos olhos, daí o nome que recebeu. Idealista, Dida disse que fundou em 2006 o PC do B de Xambioá e se candidatou para defender os trabalhadores rurais do município e da região próxima.

Aloisio foi por outro caminho. Rompeu com as legendas com as quais o PC do B se coligou. Motivo: a candidata a prefeita pelo PDT, Dagma Sousa Lopes Pires, 45 anos, líder da coligação, não pagou despesas para ele ir ao velório de um parente em Marabá em agosto passado. "Ela só quis dar R$ 50", reclama Aloisio.

Em represália, ele passou a pedir votos para a candidata de outra coligação, Ione Leite, de 68 anos, do PP, cuja família tem comandado a prefeitura nos últimos mandatos. O prefeito Richard Santiago, do PMDB, candidato à reeleição, também é da família, embora não se dê bem com Ione.

Santiago não quis falar com a reportagem. O motivo talvez seja porque a Folha foi encontrá-lo no fórum de Justiça da cidade justamente no dia em que ele tinha audiência para responder ação judicial. Santiago chegou cumprimentando todo mundo que estava no fórum, mas não quis saber de falar com o repórter, quando este se identificou.

- Sou da Folha de S.Paulo e estou fazendo uma matéria sobre eleições nos municípios do país. O senhor pode conversar comigo?

- Me procure na prefeitura.

- Mas eu preciso falar com o senhor ainda hoje. A que horas posso procurá-lo?

O prefeito não responde e nem olha na cara do interlocutor. Em seguida entra na sala de audiência para ser ouvido no processo judicial.

Ao meio-dia em Xambioá, o sol queima o ânimo da cidade. As ruas praticamente não têm árvores para oferecer uma sombra aos seus moradores e visitantes. Os xambioaenses dizem que o prefeito mandou cortá-las em um acesso de mau humor, talvez semelhante ao que o repórter experimentou.

O prefeito, porém, pouco passa a interessar quando a reportagem descobre que existem apenas dois candidatos pelo PC do B. Resta então encontrá-los, mas Dida não está na cidade.

Para chegar a ele no assentamento Caçador será preciso percorrer 40 quilômetros de estrada precária, sem asfalto, passando por trechos arenosos e cheios de pedras, vencendo subidas em que o carro só vai com a primeira marcha até um ponto onde nem camionete com tração consegue prosseguir. Então, será necessário caminhar mais de um quilômetro até a casa de Dida. É perto.

O ônibus escolar também só chega até o ponto cheio de pedras. Depois disso, os estudantes têm que ir mais longe. Caminham até três horas no meio da mata, à noite, para alcançar suas casas no assentamento criado há dez anos.

Iracema Barros Silva, 49 anos, mulher de Dida, que serviu como guia na viagem até o assentamento, diz que "a guerrilha" atualmente "é sobreviver no assentamento".

A reportagem encontra Dida assistindo à TV Senado, graças à antena parabólica. Ele vê um pronunciamento ao vivo do senador Mão Santa, do PMDB do Piauí. "Eu gosto de ouvir esse homem. Ele chama o pessoal de Lula de aloprado", comenta rindo e com ar de divertimento.

Sem recursos para fazer campanha, Dida diz que visita de moto seus colegas de assentamento. "Sem dinheiro não é fácil pleitear numa eleição com a corrupção que tem o nosso país. Mas acho que a dignidade ainda prevalece. O povo está vendo a necessidade de ter um representante da classe da gente. Viram que essas pessoas que têm dinheiro se elegem e aí acabou", afirma.

Sobre sua opção pelo PC do B, conta que "quando era criança, na época da guerrilha, tinha medo daqueles helicópteros do Exército passando". Desde então, "eu dizia: quando tiver uma oportunidade, vou me filiar ao partido e ser militante, levantar a bandeira".

Já no fim de tarde, é hora de voltar a Xambioá. No dia seguinte, será a vez de ouvir o outro candidato.

Na outra ponta do PC do B, Aloisio recebe a reportagem entre as mesas vazias de vereadores na Câmara Municipal. Diz que era soldado do Exército em Marabá onde ouvia falar da guerrilha. Conta ainda que, em 1992, negou-se a servir café a um general, "puxou cadeia" e saiu do Exército.

Em Xambioá, onde veio passar férias, interessou-se "pela bandeira do partido" e defendeu a criação de um memorial da guerrilha do Araguaia. Pela primeira vez candidato em uma eleição, anuncia que sofreu uma decepção.

"Eu estava com uma [candidata a] prefeita que se desfez de mim; coisa que eu não gosto. Foi a Dagma. Eu estava coligado com o partido dela. Meu sobrinho morreu de tiro, em Marabá. Fui falar com ela. Não me deu atenção", diz Aloisio. "Como vou ficar do lado de uma mulher dessa? Aí, ela queria me dar R$ 50. Peguei e devolvi para ela. Se não tinha dinheiro, tinha um carro lá, tinha gasolina", afirmou.

Dagma, a candidata a prefeita, afirma que "o PC do B está envergonhado. Aloisio queria dinheiro. Não estava defendendo a bandeira do partido, mas o Dida está".

Nascida em Xambioá, Dagma diz carregar a bandeira da guerrilha. "Eu era pequena. Meu pai pescava e fornecia peixe ao pessoal do Exército. Tive contato com a maioria dos ditos terroristas. Pessoas muito inteligentes. Teve um médico que salvou a vida do meu irmão", recorda-se.

Conflito armado com a ditadura militar, a guerrilha do Araguaia foi de 1972 a 1975 e resultou na morte de guerrilheiros e militares do Exército. Fala-se em 59 mortes de militantes e em 16, de soldados, mas os números variam em diversas publicações na imprensa.

Os feirantes Manoel Simplício de Souza, 62 anos, e Henrique Gonzaga Ruiz, 72 anos, há 20 anos trabalhando na rua de Xambioá, dizem que atualmente a guerrilha não é assunto da cidade.

As ruas do centro de Xambioá vão todas em direção ao rio Araguaia, às margens da qual está a cidade. É ali, à tarde, que grupos de mulheres lavam roupas e homens preparam a rede para a pesca.

A reportagem atravessa o rio. Na outra margem já é o Pará novamente, de onde o repórter veio. O motivo do retorno é conhecer o museu da Guerrilha do Araguaia, na cidade paraense de São Geraldo do Araguaia. Trata-se apenas de um barraco de madeira, numa área tomada por mato, abandonado pelo poder público.

O dono do acervo, Eduardo Lemos Porto, 42 anos, diz que sofre ameaças de políticos e policiais da região por manter o museu com dados dos guerrilheiros.

Já na cidade vizinha de Xambioá, sem museu, os candidatos em campanha eleitoral defendiam a criação de um memorial da guerrilha.

São Geraldo do Araguaia também foi um dos palcos do movimento armado contra a ditadura militar do início da década de 1970 e, por isso, a reportagem visita o museu criado em 1995 na cidade.

Porto se esforça para mostrar os painéis, empilhados uns sobre os outros na parede do museu, com fotos e legendas que contam a história da guerrilha e dos desaparecidos no confronto.

Ele também disse saber onde os corpos dos guerrilheiros estão enterrados, mas afirma que só revelará se receber dinheiro. Não quis, porém, dar um preço à informação.

Além das fotos, ele tem outras peças, não só da guerrilha. O acervo inclui até animais empalhados e cobras sucuris mantidas em formol. Tudo amontoado, coberto por poeira.

Ele mostra o acervo ao lado de dois estudantes. Os meninos o alertam com olhar e gestos que também Porto, e não só o acervo, está sendo fotografado pelo repórter. A intenção de tirar o retrato do dono do museu é apenas uma finalidade jornalística, ou seja, mostrar o personagem. Para os meninos, porém, pode parecer ainda coisa de espionagem e de repressão relacionada à guerrilha.
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Em março de 2007, o Ministério Público Estadual fez um acordo com a prefeitura de São Geraldo do Araguaia para tombamento do museu. Segundo Porto, até hoje o acordo não foi cumprido.
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De Xambioá, a reportagem segue para Aragominas, ainda dentro do Estado do Tocantins.
Enquanto o município paraense de Tailândia, retratado no capítulo 15, lidera a extração de madeira, Aragominas praticamente não tem mais árvores e alternativas econômicas, conforme afirmam os dois principais candidatos a prefeito.

A campanha eleitoral por lá está concentrada nos sete assentamentos rurais do município, onde as matas foram devastadas e moradores dizem ter saudades das florestas de pau-brasil. Os candidatos a prefeito culpam pela devastação os assentados, que vivem na região há pouco mais de dez anos.

Os assentamentos abrigam cerca de 3.000 pessoas, ou seja, 55% da população do município. Aragominas perdeu com o desmatamento quase toda a sua área de floresta. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, de 1.150 quilômetros quadrados de floresta original restaram apenas 174 quilômetros quadrados, ou seja, só 15%.

Com isso, Aragominas estava no topo do ranking dos municípios com maior área desmatada em relação ao seu tamanho. Esse foi o dado que atraiu a reportagem até lá.

A posição é desagradável para quem vive do aproveitamento da madeira na cidade. O marceneiro Elimar Sá Nascimento, 33 anos, pode ser encontrado de braços cruzados na marcenaria onde trabalha em plena segunda-feira. "Aqui o problema é falta de madeira para trabalhar", lamenta.

Os candidatos a prefeito responsabilizam os assentados, mas dizem que os trabalhadores rurais não tinham alternativas.

"A situação do assentado é muito difícil. O apoio [do governo federal] não chegou ao que eles precisavam. Então, o que fez retirar a madeira, essa devastação, foi a própria necessidade dos assentados para comer, tratar da família", diz o candidato Antonio Mota, 54 anos, do PR. Ele foi prefeito de 2001 a 2004.

"O nosso município está praticamente todo desmatado. Na região dos assentamentos tinha muito pau-brasil. Era uma área de muita reserva [florestal]. O governo podia ter segurado essas áreas para preservação", diz o prefeito Divino Pereira da Silva, 51 anos, conhecido como Rozico, filiado ao PMDB, que disputa a reeleição. Ele foi o primeiro prefeito do município, instalado em 1993.

"A solução é correr atrás de recursos federais, trabalhar em cima da agricultura familiar. Se não acontecer isso, daqui a cinco anos não tem ninguém mais morando lá. É muito sofrida a vida dos assentados. Quarenta por cento deles não têm água", diz Rozico.

Mota e Rozico dizem ainda que a campanha é baseada no corpo a corpo nos assentamentos onde ocorrem comícios à noite. Há tensões que a reportagem não pode constatar porque tinha que partir no dia seguinte a outro município.

Rozico conta que as eleições "são quentes" na cidade, apesar de o município ter somente 4.621 eleitores.

"De vez em quando, tentam me pegar nesses caminhos dos assentamentos [rurais do município]. Aí preciso dar uns tiros para o alto", diz Rozico, caindo na risada.
- E Rozico tem porte de arma?

- Que nada, [é revólver] clandestino mesmo - admite gargalhando.

"O negócio aqui é quente. Na última eleição, o pronto-socorro daqui atendeu 47 feridos. No comício é bom ter uns [seguranças] com pedaço de pau para segurar", conta ainda rindo.

Chegar a essa região de embate entre os candidatos exige superar um caminho tortuoso.

É preciso sair da cidade de Aragominas, passar dois municípios situados 25 quilômetros à frente, Muricilância e Santa Fé do Araguaia, para depois pegar uma estrada de areião, percorrer 50 quilômetros e, então, atingir os primeiros assentamentos. Para encurtar a distância, sem passar por outros municípios, seria necessário abrir uma estrada dentro de Aragominas, mas a prefeitura afirma não ter dinheiro para isso.

Na sede do assentamento Reunidas, criado há mais de dez anos a partir da invasão de uma fazenda, a Justiça Eleitoral entrega, numa tarde de sábado em um posto de saúde, cerca de 300 títulos de eleitores a moradores que passarão a votar na região, ou que pela primeira vez participarão de uma eleição.

O assentado João Marques, 54 anos, que nas eleições anteriores justificou o voto, resolveu transferir o título para o assentamento.

"Assim posso cobrar o candidato em quem eu votar", afirmou. Marques diz que a região era coberta pela floresta de pau-brasil, atualmente devastada pelos próprios assentados. "Alguns faziam cerca, outros vendiam", afirma.

Reunidos em uma casa da sede do assentamento, José Justino da Silva, 87 anos, José Calixto dos Reis Soares, 65, e Francisco Djalma dos Santos, 55, dizem que demorava horas para "varar" um pequeno pedaço de floresta de pau-brasil há pouco mais de dez anos.
Os três, porém, afirmam que os assentados já encontraram a região devastada por fazendeiros no processo de abertura de pasto para os bois. Atualmente, a maior preocupação dos três é com fantasmas que, segundo eles, incomodam o sono de todo mundo.

Mesmo sem árvores e distante do centro de Aragominas, os assentamentos ainda atraem pessoas que moravam em condições piores no Pará. Roseane Soares viveu 17 dos seus 22 anos de vida na região de Pacajá, no Pará.

"No inverno, a gente chegava a ficar três dias atolada no meio da estrada", diz Roseana que transferiu o título para votar no assentamento Reunidas.
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Aloisio e Dida do Caçador tiveram votação pouco expressiva em um universo de cerca de 9.500 eleitores. Dida conseguiu apenas 35 votos e Aloiso, quatro. O prefeito de Xambioá foi reeleito.

Em Aragominas, ganhou Mota. Embora Rozico tenha vencido no quesito bom humor.
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"Eleições na Estrada"Autor: Eduardo Scolese e Hudson Corrêa

Um comentário:

  1. Dr.Otoniel fiquei muito contente com suas informações e me proponho a ser um parceiro nesta luta que voce lidera em favor da vida.Espero que me mandes inclusive matérias para que eu possa publicar neste espaço.Um grande abraço e boa luta!

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