Seguindo na trilha da reflexão sobre o papel das redes compostas de coletivos (naturezas sociedades, separadas e reunificadas no trabalho depurificação e mediação respectivamente), proponho neste texto uma análise dos investimentos em equipamentos, técnicas e insumos para a produção de saúde. Vamos olhar o centro dos acontecimentos: onde as decisões são tomadas em função da mediação necessária entre as leis escritas. As normas constitucionais institucionalizadas, os marcos regulatórios, as portarias ministeriais, de um lado. E, de outra parte, as diversas leis implícitas, como a lei de mercado, oferta e procura, maximização dos lucros e minimização dos custos, instinto de preservação tribal, corporativismo, bom senso, senso comum, entre outros híbridos de cultura e natureza com os quais os humanos interagem na busca por definir e acessar a saúde aqui entendida, apenas, como padrão desejável de existência.
Isso porque sei que entre um disparo editorial e outro, muitos destes autores que se criticam duramente em suas obras, sentam em bares para debater e beber vinho ou cerveja. Assim não me constranjo em me servir de suas ferramentas para esculpir com golpes de idéias o sentido de nossa luta local em favor do SUS que é também, simultaneamente uma luta pelo direito a saúde em todo o planeta.
1. Transformação tecnológica e investimento
Ontem fui ao hipermercado fazer compras. No setor de eletrodomésticos me deparei com o final de um ciclo de produção e consumo em nossa economia. Não havia mais televisores de tubo de imagem à venda. A vitrine das televisões estava repleta, até o teto, de diversos modelos de TV de plasma e LCD. Após 13 anos do aparecimento do primeiro televisor de plasma (ao preço de R$ 30.000,00 ), finalmente eles dominam o mercado de produção e contra eles só resta o estoque de uma matriz industrial obsoleta.
Desta forma, os poucos modelos com o ultrapassado tubo de imagem ainda a venda, eram de 14 polegadas, destinados a dependências menos nobres de casas e apartamentos, como quarto de empregada e das crianças. O espaço nobre das casas não será mais ocupado pela antiga TV de tubo de imagem. Hoje, ao preço de uma TV de 29 polegadas de uns dois anos atrás, se pode ter uma TV de plasma ou LCD a partir de 32 polegadas.
Estamos testemunhando o fim de um formato do objeto tecnocultural (híbrido de tecnologia e cultura) que, ao ser popularizado na década de 50, revolucionou as relações sociais e seguirá sendo transformado e transformando as relações dos humanos e seu ambiente. Segundo Bruno Latour, (1994) não há mais como separar as relações sociais e a natureza e ao mesmo tempo entender o tipo de mundo e de socialização humana contemporânea.
Elas, as sociabilidades, se definiram e instituíram a partir de um processo de demarcação de fronteiras rígidas, de um lado, e produção de híbridos de natureza e cultura, de outro. Esses híbridos situados no meio da partição entre ciência e natureza, entre mundo social e o mundo das coisas em si, definiu e inventou os modernos e sua era. Veremos que a sala de cirurgia com seus equipamentos, técnicas e especialistas tem muito de social e cultural em sua constituição.
Assim como o tubo de imagens, a tela de plasma o LCD e o novo tipo de arranjo familiar, tudo está em rede e nelas se transforma constantemente. E nas redes não faz muito sentido falar de objetos puros ou fronteiras rígidas. Bastará lançarmos um olhar simétrico para as relações sociais e econômicas, de um lado e para o desenvolvimento das novas tecnologias de atenção à saúde de outro.
Então, veremos como o animal humano se enreda e retorna atualizando sua história nômade, tribal e finalmente social, política e cultural, nas redes. Em rede somos um ser que incorpora para si, e para seu mundo, as tecnologias que emergem de seu próprio movimento entre os demais não humanos que nos precedem e os que vamos criando. Estes mistos, quase sujeitos, quase objetos, retornam sobre seu criador refazendo-o constantemente numa relação de circularidade.
Nesta perspectiva de troca constante da matriz tecnológica vemos uma interminável fila de usuários dos sistemas de saúde, especialmente em locais mais afastados dos pólos regionais, esperando para realizar diagnósticos de última geração e, a partir dele, o respectivo tratamento. Do ponto de vista da gestão empresarial, ou administração de serviços é lógico manter uma reserva de espera. Todo o sistema de saúde, tanto o público, quanto o privado, são financiados pela realização de procedimentos. Daí a natural necessidade de demanda reprimida como fator de segurança para garantir retorno aos investimentos realizados.
De um lado temos a produção incessante de novos técnicas e abordagens de tratamento. Resultado: novos tipos de procedimentos que exigem novos tipos de habilidades profissionais e equipamentos. De outro parte, vemos o paradoxo de mesmo podendo aumentar o tamanho do mercado em saúde, percebermos uma timidez de empreendedores públicos e privados.
Devido ao alto custo da implantação de novos pólos regionais de atenção à saúde que disponham das últimas tecnologias disponíveis, os gestores preferem a manutenção da ambulancioterapia ao risco de investir capital em equipamentos que poderão estar obsoletos antes do retorno do capital investido.
Percebe-se, ainda, no senso comum uma confusão em relação à velocidade com que os novos recursos levam para ficarem disponíveis em larga escala. Ninguém tem a certeza de que o ofertado é de fato o melhor recurso disponível no momento. Atualizar a base tecnológica é um risco que nossos empreendedores não querem correr ao contrário dos empresários do setor de produção e venda de televisores, por exemplo.
2. A saúde como bem e patrimônio cultural de difícil percepção
O acompanhamento da mídia em torno da luta contra o câncer vivida vice-presidente José Alencar tem suscitado a opinião de que sua sobrevida se deve ao fato de ele ser muito rico. Conclusão apressada. Os tratamentos que ele fez fora do Brasil são experimentais. Não vejo vantagem em ser rico apenas para se tornar cobaia para teste de novas técnicas terapêuticas. Não obstante acompanhei ao longo deste ano, três casos de idosos (mais de 75 anos) que realizaram grandes cirurgias e tiveram recuperação rápida e sem seqüelas.
O prazo para popularização de novos medicamentos tem sido relativamente curto e as terapias genéticas são variáveis de médio prazo que podem anular o retorno monetário de grandes investimentos feitos hoje para dar retorno em médio e longo prazo.
Então é verdade que muitas pessoas não tem acesso ao tratamento que poderia beneficiar-lhes e que os serviços de saúde selecionam os seus clientes em função da manutenção econômica da instituição. Além disso, há o interesse na formação e capacitação de mão de obra.
É mais do que o simples interesse em privatizar ou estatizar plenamente o sistema. Nas duas opções temos agentes políticos e econômicos que não querem universalizar determinados recursos do sistema até terem certeza de que o custo não os colocará em uma situação de insolvência, no caso dos serviços privados, e de "ineficiência" no caso do setor público.
Mas porque eleitores e consumidores convivem com esta realidade? Tenho o exemplo de pais de um recém nascido com cardiopatia. Ele precisa de uma cirurgia em uma instituição privada e conveniada ao SUS. A equipe que realiza o procedimento o faz nas duas pontas: privada e pública. Curiosamente há duas filas para ser atendido pela mesma equipe. A do SUS é mais lenta. A que cobra R$ 40.000,00 é mais rápida. Os pais estão em dúvida.
Cabe saber como um critério deste pôde se estabelecer. O SUS remunera melhor, ou tão bem quanto os planos de saúde neste tipo de cirurgia. A diferença entre as duas formas de seguro: convênio SUS e convênio privado versus pagamento particular, provavelmente não cobre os riscos implicados para a equipe. Se os pais resolverem levantar os recursos necessários para operar seu filho assumirão um alto risco. Há a possibilidade de a cirurgia não ser bem sucedida. A possibilidade de a equipe ser responsabilizada por um eventual fracasso é alto. Então porque apresentar aos pais a hipótese de se fazer o procedimento de forma privada? Não faz sentido para mim.
Parece um cálculo mal feito do ponto de vista da gestão econômica, do ponto de vista do interesse do usuário/ cliente e das carreiras dos membros da equipe. A não ser que haja por trás disso alguma irregularidade ou ilícito.
Atualmente, são calculados em centenas de milhões de reais os processos pedindo indenização por erro médico que devem chegar ao Supremo Tribunal Federal em 2009. São processos iniciados há mais de uma década. A pressão é grande sobre as equipes médicas e a prestação de serviço pelo SUS é a que melhor ordena as relações de responsabilidades envolvidas em procedimentos de alto risco. Há apenas a lógica de mercado que trata saúde como mercadoria subjacentes a decisões tão contraditórias. Mas esta lógica é amplamente combatidas pelos representantes de todos as corporações profissionais da saúde. Será que o lobby das seguradoras é capaz de compensar o risco pessoal assumido por profissionais que ousam mercantilizar a produção de saúde?
3. As especificidades das formas de custeio
A grande questão que abordamos acima é saber como estão agindo empreendedores, gestores públicos e administradores do setor privado em relação ao impacto das tecnologias nas formas e processos de atenção à saúde. Estarão eles dispostos a levar os recursos até onde estão os contribuintes e os clientes ou aguardarão a queda dos preços acomodados em nichos de mercado bem aquecidos? Será razoável esperar que eles sigam a lei e a norma constitucional e corram os riscos de ofertar terapêuticas com alto custo de implantação e que poderão estar obsoletas no curto e médio prazo?
Podemos agora verificar que não. As mortes na fila são custos operacionais externalizados porque, até agora, não impactam o balanço financeiro das instituições de saúde. Um custo pago em tempo de vida pelos financiadores do sistema como um todo.
O aporte de técnicas, tecnologias, saberes e equipamentos no cuidado a saúde (seria melhor dizer ao cuidado, manutenção e prolongamento da vida humana) passa por uma revolução, talvez mais intensa do que a da informação e do entretenimento. Porém, de caráter muito diferente. Se tivermos em mente as formas de remuneração dos dois tipos de investimentos – ambos, aliás, na mesma área da economia: o crescente setor de serviços. Sigamos a linha trançada de nosso argumento:
Os novos televisores de tela plana e fina são pagos a vista, com poupança e/ou crédito. A atenção à saúde é paga no formato de coleta de impostos ou carteira de seguro privado. Ou seja, no caso da saúde o montante de recursos disponível a ser investido é conhecido antes de se realizar o empreendimento. Portanto, a saúde não é apenas um mercado potencial a ser explorado. No caso do restante da indústria de serviços é necessário estimar o potencial de consumo de um mercado e apostar no melhor retorno possível para o investimento. O risco para o montante é maior, portanto, na indústria de consumo convencional.
Especialmente, se considerarmos que o potencial de incerteza nos investimentos em saúde vem se reduzindo na medida em que o registro estatístico vem se tornando mais eficaz e confiável. Então se podem inferir os graus de investimentos em saúde de uma população a partir de seu perfil epidemiológico. E de um sujeito a partir de sua história de vida, profissão, hábitos de consumo e laser e logo adiante de seu mapa genético. Podem-se fazer orçamentos a partir do capital disponível. Sabemos de antemão que o sistema complementar de saúde no Brasil, por exemplo, dispõe de um volume de recursos equivalentes ao que dispõe o Ministério da Saúde. Com a ressalva de que a população SUS-dependente é muito maior do que a detentora de planos de seguro de saúde privado. Lembremo o escrito acima sobre a conveniência de se manter uma parte da demanda reprimida e teremos uma perspectiva mais funcional do sistema.
4. A aposta numa base econômica voltada para a afirmação da vida
Num país emergente como o Brasil, rico em biodiversidade e recursos naturais (por ora livre das responsabilidades de uma grande potência militar) o espaço para investimento em políticas públicas é significativo. É um dado importante que os investidores privados do setor da saúde consideram para formulação de estratégias de exploração e investimento voltado para o lucro.
Proponho um olhar que relacione e force uma similaridade ao mesmo tempo potencializada pelo intenso contraste. Poderemos, assim, ver certa semelhança entre a indústria militar norte-americana e a cadeia de produção de insumos e atenção à saúde no Brasil em seus efeitos sobre o mercado de trabalho e sobre a economia produtiva como um todo. A economia americana funciona sob forte endividamento público e de seus cidadãos. Eles consomem no agora o seu futuro. De modo que sua máquina de guerra precisa estar em constante movimento para dar lastro a credibilidade tanto a sua moeda como a sua capacidade de honrar compromissos internacionais.
No Brasil vemos o incipiente surgimento de uma base econômica na área de serviços, que mistura programas sociais de inclusão no mercado de consumo e trabalho. Isso aliado a políticas de assistência social e atenção à saúde, com a capacidade suficiente para manter o mercado de emprego formal em níveis razoáveis e a economia saudável. Aliás, podemos lembrar a frase repetida por delfim neto a respeito da gestão de Lula nos dois últimos períodos: O PT salvou o capitalismo brasileiro ao recuperar a capacidade de consumo de nossa população.
5. Política de saúde e controle social: uma garantia do cidadão e da sociedade
Então, a decisão do quanto de excelência ou ineficácia, estará presente em um sistema de saúde público ou privado é econômica, social e política.
Teremos Ineficácia quando a decisão for baseada em interesses patrimonialistas da elite socioeconômica brasileira. Aqui vamos pensar nossas raízes patrimonialistas tendo como referência a “Lei de ferro das oligarquias” (formulada em 1911 pelo sociólogo Robert Michels) que afirma que a gestão do interesse democrático tende a ser pervertida pela controle das oligarquias econômicas e políticas. Conforme a Prof. Dra. Anita Helena Schlesener ,
“Michels, crítico de Rousseau, escreveria nos últimos textos que a tendência para a oligarquia constitui uma necessidade histórica, uma das leis de ferro da história, às quais não puderam escapar as sociedades modernas mais democráticas e, dentro destas sociedades, os partidos mais desenvolvidos. Sociedades e partidos, pelo fato organizacional, estariam, conseqüentemente, sob a lei de ferro da minoria. Já antes, na sua sociologia dos partidos, Michels tinha enfatizado essa tese, escrevendo que a organização é a fonte donde nasce a dominação dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatários sobre os mandantes, dos delegados sobre os que delegam de tal modo que, como diz na sua famosa síntese, «quem diz organização diz oligarquia”.
Por outro lado, verificaremos um sistema de excelência quando ocorrer uma correspondência entre a exigência das maiorias votantes e o melhor interesse das mesmas, em uma democracia razoavelmente legítima. Pensemos nos modelo gramsciano de sociedade civil capaz de controlar e direcionar para o bem comum as ações das instituições econômicas e democráticas. Ainda segundo a Prof. Dra. Anita Helena Schlesener,
"Gramsci propõe uma nova estratégia que ainda não se conseguiu explicitar completamente, já que ele não recorre à noção de democracia direta, mas sugere um novo tipo de regime representativo. As questões contrapostas à teoria do elitismo são: como organizar-se na sociedade civil e reconstruir a história sem abrir brechas de cooptação? Ou como redimensionar o movimento das classes subalternas a cada momento em que ocorrer a absorção de seus dirigentes? São questões prementes e profundamente atuais, quando se constata que a estratégia do elitismo continua a formar as consciências e a desarticular os movimentos nascentes no processo de organização dos trabalhadores"
O laboratório social da implantação histórica do SUS no Brasil talvez seja o maior teste da hipótese de projeto de sociedade civil e democrática proposto por Antônio Gramsci.
Muitos dos autores da reforma sanitária no Brasil foram atentos leitores de Gramsci. Mas ainda teremos algo a dizer a favor da capacidade e autonomia da sociedade civil ao longo do texto. Por ora cabe assinalar que a hipótese de controle social tem sido amplamente desconsiderada pelos empreendedores da área da saúde.
O que verificamos é que todas as cancelas e trancas, inscritas na lei, para impedir a apropriação privada dos recursos do SUS, tem sido suavemente contornados ao longo do tempo, quando não arrebentadas a golpes de autoritarismo como se verifica na gestão de São Paulo, atualmente. Parece que o ponto é que simplesmente há mais pessoal capacitado e qualificado e disposto a ganhar dinheiro com a manipulação das normas e o desrespeito à lei do que pessoas capacitadas e qualificadas para garantir a função social do SUS. Vigora na prática administrativa o cálculo racional enclausurado no território unidimensional do mundo econômico. Mas esta é a topologia das redes e suas múltiplas dimensões. O lugar onde o SUS vive não é geográfico apenas, ele é um lugar eminentemente simbólico.
De qualquer forma, este investimento no cuidado em saúde será fortemente determinado pelos padrões socioculturais e tecnológicos da sociedade. Vemos que o controle social pode funcionar melhor em sociedades com menos desigualdades, em que há uma forte comunhão de interesses na classe média em favor das garantias sociais e individuais e/ou então altamente judicializadas, como a norte americana.
Cultura e tecnologia se hibridizam, ao se afetarem mutuamente, conforme Latour. Não podemos pensar o social sem considerarmos a natureza produzida em laboratórios de pesquisa e desenvolvimento. As políticas de saúde estão sendo afetadas por cálculos econômicos que envolvem desenvolvimento tecnológico e estratégias de manutenção do poder político. No cálculo econômico temos a grande dificuldade de a iniciativa privada fazer investimentos que não assegurem retorno, ou seja, lucro.
Ora o lucro na atenção a saúde é particularmente antiético e de difícil legitimação. Dado o custo real de uma terapêutica de atenção a saúde, fica evidente que a margem de lucro, ou está na variação para menos na remuneração do trabalho, na economia com insumos ou em simplesmente na não realização plena ou total do conjunto de procedimentos terapêuticos. Uma agravante é que a norma jurídica prevê que a saúde é um direito universal dos cidadãos e uma obrigação do Estado que dispõe dos recursos que a população recolhe na forma de impostos.
Na questão dos convênios privados é ainda mais difícil. O contrato deve prever garantias e privilégios que atraiam os clientes. Por outro lado disponibilizar todo o arsenal de recursos disponíveis exigiria da iniciativa privada investimentos que não dariam retorno no prazo da expectativa de vida de seus agentes empreendedores. Isso é o que menos se pode esperar de um empresário: altruísmo com a instituição, com a geração futura e com margem de risco considerável. Isso na prática, sem dúvida, não seria capitalismo.
Mas de outro lado, o SUS criado com pressupostos de funcionamento que requerem uma base social politizada e atuante, ou seja, uma nação com uma classe média, educada e não muito distante da elite e dos pobres, converteu-se em eldorado para empreendedores, aventureiros e lideranças políticas corrompidas.
Desde 1988 o Estado brasileiro vem regulamentando o imenso aparato de proteção social que está inscrito na nova constituição. O SUS foi um dos primeiros itens das garantias constitucionais a ter regulamentado a sua efetivação. De lá para cá o processo histórico de implantação do Sistema Único de Saúde, sofreu e está sofrendo, intensos ataques a sua lógica de funcionamento.
6. Iniqüidades no sistema
Mas atenção: apenas uma parte de seu espírito (o da universalidade e controle social, principalmente) é abertamente questionada. Ora, veio a calhar para o tipo de estrutura representativa de nossa democracia o montante de recursos a ser gerenciado na área da saúde. São mais de 60 Bilhões de reais e segue crescendo, o montante repassado para os fundos de saúde dos estados e dos municípios. Esta enorme quantidade de recursos, concentrada em grandes centros de excelência é uma tentação para os políticos e gestores patrimonialistas, nepotistas e corruptos.
Com os recursos do SUS são celebrados os mais diversos tipos de terceirização, precarização do trabalho com a contratação de trabalhadores cooperativados. Estes recursos só podem ser gerenciados na lógica da redução dos custos que o Estado teria se fosse o prestador direto dos serviços.
A questão é o que é feito com a diferença de dinheiro investido. Já vi contratos de terceirização pelo qual os trabalhadores recebiam entre 50 a 70% do valor pago pelo gestor para cada posto de trabalho. isso indica uma forte transferência de recursos públicos para a iniciativa privada. Partes destes recursos, gerados pela reconfiguração do mercado de trabalho, são reinvestido na manutenção do negócio, ou seja, são pulverizado entre os candidatos aos cargos de gestão a cada nova eleição. Ou seja, em propina direta a agentes públicos de carreira, de confiança ou eleitos. Há, é verdade, uma luta entre estes prestadores de serviço terceirizado e cooperativado, mas o “pedágio” é pago por todos.
Para ex-prefeitos, ex-governadores e secretários da saúde dos municípios e Estados o termo “judicialização da saúde” forma um enorme cobertor que tapa, tanto o combate legítimo ou exagerado ao desrespeito as garantias individuais, quanto o desvio de verbas em contratos de licitação. Seja entre fornecedores, seja entre empresas de serviços terceirizados.
Assim, ser processado pelos Tribunais de Contas, pelo Ministério Público ou Polícia Federal equivale aos custos operacionais em atividades altamente lucrativas, algumas francamente ilegais e outras questionáveis do ponto de vista constitucional e imorais do ponto de vista do melhor interesse do contribuinte.
Mas isso se deve a um descompasso entre a norma constitucional e a inteligência coletiva a qual foi dada a responsabilidade da fiscalização, do controle e da definição das metas e prioridades do Sistema Único de Saúde. Não somos todos alfabetizados na linguagem do direito, da administração da contabilidade e dos dados estatísticos.
Mas é desta imensa maioria, leitora de jornais sensacionalistas, telespectadora de novela e programas jornalísticos que beiram ao espetáculo grotesco, que devem surgir os atores sociais que se encarregarão de efetivar o controle social. Uma grande aposta, otimista e bela...
Caberá combinarmos com as forças sociais que o sistema vem em benefício de todos. O problema é que por traz da lógica de gestão privada da saúde e do SUS para os pobres há uma racionalidade tribal e patrimonial. Vemos secretários, alguns bem idosos, implementando estratégias de gestão do SUS que revogam o espírito da reforma sanitária, em benefício de um conluio de interesses a favor da gestão privada dos recursos do SUS.
Ora, como é reconhecido que processos na justiça contra políticos bem situados economicamente simplesmente não terminam, antes das prescrições das penas. Basta ter desviado recursos suficientes para pagar os mediadores da província de linguagem do direito (advogados) para que este contratempo não seja mais do que um dos ditos custos operacionais.
7. O desafio do controle social
Nesse contexto mais amplo, o controle social arca com uma tarefa que se torna mais complexa e sofisticada a cada dia. Em resumo a província de linguagem em que são formuladas as leis, os contratos de gestão, as portarias e toda a gama de procedimentos burocráticos (que fazem os recursos retornarem de Brasília até o local onde o cuidado é realizado) não dialoga com as centenas de províncias de linguagem espalhadas por todo o território nacional.
Além disso, os mediadores competentes são insuficientes para dar conta, sequer da formação continuada de conselheiros, que dirá para assumirem plenamente o trabalho de tradução e efetivarem o controle social. São apenas algumas centenas de pessoas qualificadas em todo o Brasil
8. O dilema local: Abertura e Propostas
A questão central, neste texto, é indagar como as perspectivas de incorporação de tecnologias pesadas e leves à indústria da atenção em saúde, podem explicar dois efeitos peculiares e perversos que tem pervertido a norma constitucional do SUS: Primeiro a concentração dos recursos destinados à saúde em investimentos na rede hospitalar da capital do Estado – gerando o fenômeno chamado “ambulancioterapia”. Segundo, o fenômeno da disseminação da celebração de contratos de gestão da saúde pública entre os entes públicos e as entidades filantrópicas, fundações e seus similares.
De início, cabe lembrar que a concentração de recursos em Porto Alegre é uma distorção do sistema de captação de impostos que causa dois fenômenos sociais perniciosos. De um lado, para o desempenho de funções iguais temos diferenças salariais muito significativas entre profissionais que prestam serviços remunerados pelo SUS, segundo sua região de atuação.
De outro lado o perfil epidemiológico da população do Estado sofre uma distorção significativa. As patologias diagnosticadas com CID que são tratáveis em setores de oncologia, transplantes, cirurgias cardiovasculares, tratamento continuado de doenças crônicas como HIV/ AIDS, usuários de diálise continuada, (que são os mais bem pagos pelo sistema) só são acessados por pacientes que moram na região dos pólos regionais de saúde. Estes pólos possuem infra-estrutura instalada e em condições de faturar os procedimentos. Mantendo a sustentabilidade econômica destes serviços de saúde conveniados ao SUS.
Mas a população rural, e de municípios distantes das capitais, ou dos pólos regionais, adoece e morre sem que seja aplicado ao diagnóstico o arsenal de saberes, medicamentos, técnicas e tecnologias disponíveis atualmente. No caso da ambulancioterapia, fica em condições muito frágeis em relação a seus cuidadores devido a precariedade do vínculo terapêutico e os riscos e agravos relativos aos deslocamentos e hospedagens.
A concentração de recursos públicos e dos equipamentos de saúde com melhor e mais recente aporte tecnológico em Porto Alegre, para ficar em um exemplo que me á mais familiar, tem relação:
Primeiro, com o interesse dos profissionais ligados às universidades e aos serviços públicos e privados de saúde. Exercer suas carreiras nas duas esferas de trabalho remunerado é uma vantagem.
Uma leitura da mediação entre os capitais simbólicos envolvidos explica a concentração de poder de decisão em uma dada região geográfica. Observamos que a capital do Estado é habitada pelos donos dos capitais simbólicos relativos à detenção de saberes e monetários na economia do cuidado a saúde. Isto ocorre pelo acesso simultâneo que a elite dos profissionais da saúde tem aos melhores e mais bem remunerado postos de trabalho e ao prestígio acadêmico que legitima esta distinção monetária.
Em segundo lugar, outro fator que dificulta a capilarização do arsenal de recursos disponíveis é o custo da implantação da infra-estrutura tecnológica nos locais mais distantes do estado. Este custo, como vimos ao longo do texto, se apóia fragilmente na indisponibilidade de recursos para investimento e fortemente em uma característica sócio-cultural.
Como afirma Michel Serres , a vida após os 35 anos foi social e tecnicamente conquistada há poucos séculos e se tornou comum apenas após a segunda grande guerra. No Brasil a expectativa de vida subiu em cerca de dez anos dede a década de 50 até os dias atuais e seguirá crescendo.
No entanto, o conjunto de valores simbólicos dos descendentes das populações com expectativa de vida menor não se alteraram. A cultura se atualiza com defasagem em relação as mudanças tecnológicas. Por isso o sofrimento e a morte são tidos como natural nas pequenas cidades quando comparadas ao impacto midiático que elas geram nos grandes centros urbanos.
Finalmente, o SUS ainda está para ser reconhecido pelo bem que já proporciona e pela necessidade inescapável de um desenvolvimento sustentável através de uma economia baseada no serviço e na afirmação da vida que ele (o SUS) é capaz de ajudar a resolver.
Referências
Latour, Bruno. Jamais fomos modernos – ensaio de antropologia simétrica. Editora 34. São Paulo,1994.
____________ Políticas Da Natureza, Como Fazer Ciência Na Democracia. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
Serres, Michel. Hominescências: o começo de uma outra humanidade? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2003.
Sites consultados:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tela_de_plasma. Consulta em 22.12.2009
Prof. Dra. Anita Helena Schlesener - Universidade Tuiuti do Paraná.
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