Gilmar França

Gilmar França
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Duas cenas






Cena um:

Uma paciente obesa está comigo na porta de um consultório clínico no Posto de Atendimento Médico da Vila IAPI. Várias pessoas idosas aguardam juntas na ante-sala.

Uma delas começa uma conversa sobre a nova presidente da república. Tem a voz firme que lhe subtrai, na aparência, alguns anos. Mas visivelmente tem mais de 70. Será nossa Setentona. Afirma que espera que, Dilma por ser mulher, com uma inteligência maior (terá querido dizer sensibilidade?), poderá ter sucesso.
Imediatamente duas idosas falaram ao mesmo tempo. Uma disse que agora é que iríamos ver, em tom de ameaça soturna. Esta será a nossa Indignada. E a outra, a terceira, que chamaremos a Ressentida, disse: - Não gosto da Dilma e acho que o Lula não deveria ter feito tanta propaganda dela, isso é uma vergonha. A primeira, Setentona, começa a justificar que isso realmente é errado. A Indignada afirma que ele era o presidente de todos nós. A Ressentida diz que pode falar porque foi votar apesar de não ter obrigação pela idade avançada. Então, tem o direito de reclamar. A Indignada sai da ante-sala dizendo: - Vocês vão ver! Agora, vocês vão ver. Mas aqui no Rio Grande o Serra venceu...
Ao passo em que a Ressentida continua dizendo que foram os nordestinos que deram a vitória para a Dilma. Que eles nunca trabalharam na vida e estão ganhando um salário mínimo igual a ela que trabalhou por trinta anos. Nesse momento um senhor que estava, até então, em silêncio adverte: - e eu que trabalhei 40 anos e ganho menos que "um desses " que tem benefício, bolsa família e mais cesta básica, fazem um monte de filhos e vivem nas nossas costas.
A idéia comum no grupo, diria que era uma roda informal de conversa, girava em torno dessa indignação que reagia contra o insuportável fato dos miseráveis ganharem o mesmo que os pobres, sem porém, jamais terem trabalhado. Esqueciam-se, todos, o fato de a definição de miserável leva em conta justamente o fato de serem, na maioria das vezes, trabalhadores informais, urbanos ou rurais. Alguém sem vínculo formal com o sistema de produção. Mas dá-se um desconto. No mais parecia um resumo, em linguagem informal, de todo o discurso conservador da estrema direita.
Havia, também, no ar mais que bairrismo ou preconceito regionalista. No posto naquele horário podia-se contabilizar uma excêntrica maioria, separada por décadas de distância: - Somando os velhos aposentados a partir dos 60 anos e os adolescentes e jovens em atendimento (a maioria com um bebê no colo), tínhamos uma maioria que não se entendia.
Mas antes de ficar indignado com o racismo, preconceito e os rasos argumentos que ouvi, comentei com a paciente que eu acompanhava: como era delicioso o desdém do senso comum. A falta de correspondência entre as opiniões que unem estranhos em frente a uma porta de um consultório do SUS é constrangedora e graciosa, cínica e maldosa, divertida e inconseqüente.
Pensei nas respostas que as pessoas dariam a um interlocutor que fizesse perguntas diretas sobre o mesmo assunto que elas discutiam alegre e descompromissadamente, enquanto esperavam o momento de encarar os diversos e impessoais (e, no entanto tão íntimos) veredictos que os médicos tem para cada paciente que lhe cruze o caminho.
Enfim, pensei no que diriam frente a uma pergunta direta como: Vocês acham justo que alguém passe fome no mundo de hoje? É certo desejar a desgraça dos outros para mitigar a sensação de frustração que vamos acumulando diante de nossa própria pobre existência? Sim, porque nisso todos concordavam. No pequeno grupo só havia vítimas pobres e indefesas: - “Eu, se tivesse algum poder, faria tudo ser diferente”. Foi esta, alias, a fala final e literal da Setentona.
Dei-me conta de que essa é a delícia cínica do senso comum. A necessidade de diálogo que surge quando começamos a nos sentir como gado em um rebanho inerte provoca qualquer tipo de aliança, qualquer tipo de concordância em que possamos nos sentir parte de um grupo. Forjamos pertencimento e zonas de comum mais favoráveis mesmo ao custo de emitirmos opiniões racistas, mal informadas (ou mesmo, legitimamente conservadoras) para não sentirmos apenas o comum de sermos seres no rumo da morte, que de comum tem apenas sua redundância passiva, sua insignificância estatística. Vale qualquer coisa. O importante é tornar mais leve o peso das horas.
Cena dois:

Uma paciente com diagnóstico de esquizofrenia e epilepsia associada, depois de vários dias falando que uma ou outra pessoa queria matá-la, recebe o convite de sair para dar uma volta na quadra com mais outros dois pacientes e a psicóloga de serviço. A psicóloga julgou que seria tranqüila a saída e não imaginou como tudo terminaria.

Vinda de uma internação dois meses antes, com uma avaliação psiquiátrica recente em que uma nova internação foi cogitada, a situação se mostrava delicada. A paciente estava em uso de antipsicótico de última geração há vários meses. No dia anterior teve início o processo de introdução da última palavra em controle de impulsividade agressiva e sintomas (como audição de vozes e visão de vultos) que desencadeiam crises de mania de perseguição associadas ao pânico e desespero. Às vezes, a isto tudo se somavam crises convulsivas que irrompiam após o estresse da mania de perseguição e/ ou das alucinações.
Há um tempo esta paciente havia sido testemunha de uma agressão sofrida por um usuário em uma clínica privada onde estava morando. O paciente morreu em conseqüência das pauladas que levou do “cuidador”. O caso foi notícia na imprensa e mídia eletrônica local.
No dia em questão, após se distanciar cerca 600 metros do SRT, a paciente sentiu-se em iminente ameaça de ser agredida e atacou a psicóloga que a acompanhava. Pegou-a pelos cabelos derrubou-a no chão e começou a espancá-la. Muitos gritos e cerca de três minutos depois, um transeunte conseguiu a muito esforço separar as duas. Em seguida, chegaram os porteiros junto com mais algumas colegas de trabalho e conseguiram trazer as vítimas de volta ao SRT.
Foi providenciada uma ambulância do SAMU para levar a paciente ao Plantão de Saúde Mental do Posto Atendimento Médico III que é a única referência para atendimento de surtos psicóticos e regulação de internação na cidade de Porto Alegre.
A ambulância levou mais de uma hora para chegar e antes foi necessário convencer o regulador do SAMU de que o caso justificava o tipo de uso solicitado para veículos do SAMU. Já no consultório da emergência a médica avaliou que o episódio psiquiátrico se deu simultaneamente a um crise epilética, razão pela qual enquanto a convulsão estava acontecendo, ela não parou o gesto de agressão à psicóloga. Desde então está internada. A psiquiatra não recomenda seu retorno para cuidado em SRT. A psicóloga está bem, mas agora carregam uma nova ferida na alma, segundo suas próprias palavras. Uma ferida que não cicatriza, apenas vai ficando cada vez mais no passado.
Nesta segunda cena uma complexidade mais violenta emerge em meio às apostas que fazemos. Tentamos nos impor de forma construtiva ao caos do real e ao atavismo da atualização em cada instante de um registro doloroso. Um eterno retorno do mal que em saúde mental tentamos abortar com o cuidado que o vínculo promove. Porém, o tempo, denso em altura e profundidade, provoca, na finitude de sua extensão, a novidade do instante do mal. O lugar onde não se pode mais recolocar a aposta. A tragédia que instaura no presente a solidificação do passado de dor. A conjuração de forças que produzem a doença encontra a sinergia destrutiva que anula nossos esforços de produzir um comum saudável.
Nada é comum na cena dois, a não ser a confirmação do mal, do dano, da perda e da impossibilidade. Mas o mau da psicose não é apenas a leitura distorcida da realidade.
Como vimos na cena um, nos divertimos brincando com as várias visadas que cada um pode originalmente lançar sobre o mundo. Avançamos uma ilusão comum para mitigar nosso sentimento de solidão ou de acompanhamento uniforme e pasteurizado: resistimos ao instinto de manada. Qualquer excesso nos deixa triste nos causa tédio, o maior horror que nos assola. Como remédio para o tédio vale a violência contra a noção do outro, contra a tribo nordestina ou mesmo contra os que têm nas costas algumas décadas a menos do que nós. O mau da psicose é que ela não negocia, em seu extremo. Precisamos de um entre o surto, consistente para fazer vínculos de afeto no aqui e agora. Quando não temos esse tempo a psicose consegue contornar as combinações do cotidiano que nos permitem a guerra fria de uma coexistência minimamente habitável, como no exemplo da cena um.
Cena um: a violência fria que produz, mesmo na roda, uma zona de comum, perversa, mas comum. Cena dois: o mundo vira meu abismo íntimo e o outro é o objeto de minha queda. O instrumento de uma ruína mútua. Onde não há aliança possível. Onde o sem nome se instaura...
 

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