1. Marco Zero: Coletiva de imprensa
A idéia de uma coletiva de imprensa pressupõe alguns atores: De um lado os especialistas. Aqueles que querem explicar, descrever um fato em seus detalhes mais importantes. Pressupõem-se que eles devam satisfações a sociedade, sejam treinadores de futebol, burocratas, políticos ou cientistas. Devem satisfação porque sua atividade tem relação com os consumidores, com serviços pagos por impostos ou poderes determinados pelo voto. São todos encadeados ao senso comum por vínculos de risco que afetam a todo o coletivo. Nossas decisões e nossa vidas dependem de decidirmos no sentido do melhor comum possível. Por isso informação é fundamamental.
A informação é dirigida ao senso comum. Mas seu efeito é o de reformar o senso comum e não de congelá-lo. Como a quantidade de informação aumenta constantemente a prestação de contas não para nunca. Não se vende mais jornal pelo fato de se refletir o senso comum . Ao contrário. A manchete precisa levar o leigo a conhecer, pois disso depende a vida de todos.
Então para questionar os especialistas os jornalistas, generalistas, devem se socorrer de fontes que lhes proponham as questões que possam ajudar o leitor, ouvinte, telespectador a conhecer. Mais do que saber, que pede o silêncio depressa demais, quer a última palavra muito cedo, o conhecimento se dá em processo de aprendizado e, portanto, qualifica melhor para a escolha.
Não se trata de fazer juízo, de vir a saber para julgar. O que está em jogo são as escolhas que produzem mais ou menos bem comum. O julgamento emana do fechamento de questão. Do silêncio constrangedor frente ao mundo cada vez mais complexo em que nossa segurança não está na simplicidade de "saber" quem é "o" culpado, quem é a vítima, para em seguida dirigirmos o olhar ao escândalo da próxima celebridade.
Então quando um jornalista pergunta ele o faz em nome do coletivo. Ele representa o senso comum que quer conhecer mais. Ele não reproduz o senso comum, ele o transforma sempre. E é por isso que nunca sentimos a mesma coisa diante de uma ignorância que se repete. Por que a cada nova vez, há menos bem comum para partilhar e a moeda da ignorância, a miséria, aumenta.
Quando os diretores da ULBRA, da Secretaria Estadual da Saúde e da Secretaria Municipal da Saúde de Canoas chamaram a imprensa para uma coletiva observamos algumas coisas:
a) Os entrevistados confraternizaram até certa altura da coletiva. Parabenizaram-se mutuamente pela "competência" e presteza deles no episódio;
b) Quando uma jornalista cedeu sua vez de perguntar ao representante do sindicato da categoria da suspeita os jornalistas não gostaram, mas os entrevistados também não. Ora, prestar contas não é fácil e um entrevistado sente-se tão bem quanto menos se expõe, lei-ase presta contas, durante uma coletiva;
d) Tudo parecia estar esclarecido muito rapidamente: Havia um culpado, vítimas e o ponto final, aquele que permite ao leitor virar a página para ir ler o setor de esportes.
2. A cobertura diária, a partir do merco zero:
Hoje,quatros dias depois da coletiva o que menos temos são certezas reconfortantes. Mais e mais questionamentos vão se interpondo. Os atores não se calam. Finalmente aparecem as questões - que se feitas na coletiva - teriam nos ajudado a conhecer melhor as condições reais que nos são oferecidas quando precisamos de um leito hospitalar. Vamos as questões:
O protocolo de segurança no uso de medicamentos controlados é muito rigoroso. Morfina não se compra na esquina. Dentro de um hospital todo o medicamentos só sai da farmácia para o posto de enfermagem mediante prescrição médica. Aqui segurança e eficiência nos gastos conjugam mais segurança para o paciente.
Mas no caso da morfina é muito mais rigoroso o controle. Somente enfermeiros graduados podem ter sob sua guarda, durante o seu horário de trabalho e em quantidade controlada. Os Técnicos em Enfermagem podem administrar medicamentos controlados sob supervisão do Enfermeiro e este precisa checar ao final do palntão quantas doses foram usadas e contar junto com o colega que assume o próximo horário a quantidade de doses que estão disponíveis.
Ou seja, é impossível roubar medicação controlada dentro de um hospital sem que alguém o perceba a cada fechamento de plantão de seis horas durante o dia e de doze horas durante a noite. Como Vanessa ficou por tanto tempo com medicação a qual não deveria ter acesso? Quem lhe deu a receita ou lhe forneceu ilicitamente tais substâncias?
Como a comissão de investigação do hospital ficou tanto tempo avaliando a qualidade da água se recém nascidos saudáveis não bebem água, apenas leite materno?
Porque o protocolo que diz que os enfermeiros devem supervisionar os procedimentos não é efetivado? Contenção de despesas?
Por que um delegado pode afirmar em apenas algumas horas que uma funcionária do hospital é psicopata e a equipe de saúde do trabalhador, a administração do hospital e os supervsiores do trabalho não conseguiam em dois anos e em duas instituições hospitalares? Ou bem um foi precipitado ou todos os outros negligentes.
Há evidentemente mais perguntas. Se houvessem dez jornais em Porto Alegre teríamos, certamente, dez coberturas diferentes. Pelo menos vimos que dois jornais tiveram uma abordagem diversa. Porém o senso comum foi refletido e não informado. Muito ainda vai ser elucidado.
Os trabalhadores da saúde querem ser ouvidos. O pico da curva no gráfico que o caso de Vanessa representa nos levará a refletir muito sobre como vivem os trabalhadores da saúde como um todo. Estes casos estremos podem nos orientar sobre como vai indo o cotidiano da maioria. Como contou Moacyr Scliar, na Zero Hora de hoje, sobre um cirurgião alemão que operou, estando doente mental, até a morte durante o período do Nazismo o caso de Vanessa pode nos dizer muito sobre o Brasil de hoje.
Histórias do bem e do mal, certo ou errado, cabem bem nos contos de fada. Para assustar criancinhas. O caso de Vanessa assusta pelas ilações que se pode fazer em relação as condições em que trabalham mais de 100 mil trabalhadores da saúde do nível somados as dezenas de milhares de profissionais de nível superior. Algo assim não acontece do nada. Há implicações sistêmicas que devem interessar a qualquer um que um dia precise de um hospital. E quem não o usa, seja ao nascer, seja ao morrer?